Gripe?

Gripe?

Acordei como sapo esquecido no sereno: frio nas costas, voz presa no fundo da garganta, dignidade escorrendo pelo nariz. O despertador tocava, mas meus membros ignoravam. O celular vibrava no criado-mudo, ameaçava ganhar vida própria.
Olhei para cima. Esperei forças divinas ou, pelo menos, uma aspirina caída do teto. Em vez disso, aquela voz familiar arranhou o ar:
— Que festa, hein?
Suspirei. — Você de novo? Não passou no concurso da extinção, não?
A gripe se materializou na poltrona, enrolada em meu cobertor favorito. Tinha cara de quem achou graça na minha desgraça.
— Concursos são para vírus menores. Eu sou tradição, patrimônio da humanidade.
Revirei os olhos, peguei o celular. Vinte e três mensagens do grupo “Equipe Fênix🔥”. O chefe digitava com aquela pontuação suspeita de quem está irritado:

> Chefe: Gustavo? Chegando?
> Chefe: Reunião começando em 10
> Colega: Você está online?
> Outro colega: 👋
> Chefe: Preciso dos dados do relatório
> Colega: Alguém viu o Gustavo?
> Outro colega: 😫

A gripe espiou por cima do meu ombro. — Diz que está comigo. Eles vão entender.
— Ha! Nem se eu desenhasse.
Me joguei na cama, celular no peito. A gripe se aproximou. Soprou aquele hálito de eucalipto no meu ouvido.
— Não percebe como tudo fica mais interessante comigo? Você vira assunto. Lembra aquele inverno em que você tentou fazer inalação com água fervente e acabou com o rosto vermelho de tanto vapor? Aposto que ninguém esqueceu daquela foto no grupo da família. Além disso, você ganha sopa, ganha chá. Tem gente que só recebe carinho quando pega gripe. Eu sou tipo Natal, só que com febre e menos presentes.
— Carinho regado a termômetro e sermão. Que vantagem. — Respondi enquanto tentava limpar o nariz com elegância. Falhei. O lenço de papel rasgou. A gripe sorriu, satisfeita.
— Você só se permite parar quando estou aqui. É a desculpa perfeita para dizer não. Não para o chefe, não para as obrigações, não para o mundo. Sou seu passe livre.
O WhatsApp apitou de novo:

> Chefe: Gustavo???
> Colega: Tudo ok?
> Outro colega: 😐

— Não estou vendo vantagem nenhuma. Só vejo minha cabeça apitar como chaleira com água fervendo e minha dignidade pedindo as contas.
A gripe levantou, deu um giro dramático pelo quarto, como quem apresenta argumentos em tribunal.
— Sem mim, você ia para academia às 21h, responder e-mails no domingo, sorrir para colega que não gosta. Comigo, não. Comigo, pode vestir pijama três dias seguidos, comer biscoito no café e no jantar. Pode até ver filme ruim sem vergonha.
Ri. — Filme ruim não tem desculpa.
— Tem sim. “Estou doente, só consigo assistir coisas leves”. — Ela imitou minha voz, exagerada, e quase caiu da poltrona de tanto rir.
— Mas por que existir? Não dava para só desligar o mundo sem precisar passar por isso? Se você fosse botão, eu já tinha desligado. Mas é palco, é show: luzes, febre, ação.
A gripe cruzou os braços. — Eu sou o lembrete ambulante de que você é humano, não máquina. Se não fosse por mim, ia virar robô e nem ia perceber. Eu trago poesia ao sofrimento, faço você sonhar com coisas simples: ar sem dor, xixi sem levantar de madrugada para tossir.
— Poeta da coriza. Que bonito.
O grupo do trabalho explodiu outra vez.

> Chefe: Gustavo, você está doente??
> Chefe: Precisamos do relatório
> Colega: O cliente está esperando
> Outro colega: 😨
> Chefe: Gustavo????
> Chefe: Responde, por favor
> Colega: Gente, o Gustavo morreu ????
> Outro colega: 😱💀

A gripe pegou o celular da minha mão, digitou com dedos frios:

> Estou gripado.
> Não tenho condições de trabalhar hoje.
> 🤧

— Pronto — disse e largou o celular —. Agora pode dormir em paz.
— Eu podia só tirar férias…
— Férias precisam de planejamento, aprovação, planilha. Eu não. Basta um espirro e estou aqui por tempo indeterminado. Olhe pelo lado bom: ninguém nunca questiona sua falta com mais de 38 graus.
— E você não podia ser mais… rápida? Entrar, bagunçar, sair? Precisa mesmo desse teatrinho de cansaço, dor, calafrio, nariz escorrendo?
Ela fez cara de ofendida. — Eu sou artista. Trabalho com camadas. Se não tivesse drama, era só alergia. Eu sou a Broadway das doenças leves.
Ri, tossi, ri de novo. — E por que sempre volta? Não cansa?
A gripe se aproximou, baixou o tom: — Volto porque vocês esquecem. Quando tudo fica rápido, automático, produtivo, volto para lembrar que nem tudo é meta. Sou pausa forçada. Sou a contraordem do mundo eficiente. E, sinceramente, adoro ver vocês tentando trabalhar debaixo do cobertor.
Me rendi, cabeça afundada no travesseiro. — Você é insuportável, mas tem lá seus argumentos.
A gripe me cobriu, ajeitou o travesseiro e colocou o chá na mesinha.
— Aproveite o ócio. O resto pode esperar. E se alguém reclamar, coloca a culpa em mim. Eu aguento.
Fechei os olhos. O grupo de WhatsApp continuava a pipocar, mas o mundo parecia distante, abafado por camadas de cobertor e coriza. E, pela primeira vez, não achei tão ruim assim.
Quando acordei, a gripe já tinha ido. Deixou um pacote de lenços na cabeceira, como quem assina o livro de visitas. No silêncio confortável de quem sobreviveu ao teatro dela, encontrei, debaixo da xícara vazia, um bilhete: “Volto logo. PS: Não esquece do chá.”


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